segunda-feira, 27 de abril de 2015

As folhas da amendoeira...

Sempre fui uma menina muito agitada e serelepe (nossa, serelepe! Que coisa antiga. Ok.). Prova disso é que venci a corrida pela vida, né, meu bem. Eram milhões de competidores rumo à bola de ouro, e lá fui eu super determinada a ser a número 1. E fui. E cheguei mesmo. Tive que dar umas "rabadas" em alguns irmãos pelo caminho (sorry, galera), já estava "sentindo minhas forças irem embora,", meio Bruna Karla/Anderson Freire, mas, ufa, deu tudo certo. Quer dizer, quase. Rolou um estresse familiar lá pelo quarto mês de gestação da minha mãe. E eu quase vi uma luz no fim do túnel, e não era coisa boa: minha mãe, 25 anos, mãe solteira, foi levada a uma clínica de abortos, no bairro de Botafogo, zona sul carioca. Lá, naquele lugar de morte, tive a chance de viver. Vendo que o bicho ia pegar pro meu lado, dei o maior impulso que poderia e chutei a minha mãe. Era a primeira vez que ela me sentia. E teve que ser logo ali. Ela entendeu como um sinal. De Deus (ufa!) e saiu correndo daquele lugar decidida a me criar sozinha. 


Segui crescendo ali na barriguinha da mamãe, linda e serelepe (de novo!). Tanto que não deu outra: nasci numa terça-feira de carnaval. Ô abre-alas, que eu quero passar... Hahaha tudo bem, nada a ver, mas foi só pra dar uma alegrada aqui...

Nasci, cresci, fui um bebê careca como tantos. Os primeiros dentinhos, as febres de madrugada, os inúmeros remédios, as manhas, os dengos, as pirraças. Tudo igual.


Mas, num dado momento, sem ter onde me deixar, impossibilitada de ficar comigo nas vagas em que vivia morando, sozinha, minha mãe se viu obrigada a me deixar num orfanato. Não deve ter sido uma decisão fácil. Sou mãe hoje, de 3 lindos filhos. Quando #NandaEDuda foram pra creche pela primeira vez, fiquei em pedaços. Me separar daqueles dois serezinhos foi bem dolorido. Mas elas voltam todos os dias pra casa. No meu caso, minha mãe só me via de 15 em 15 dias. Eu tinha uns 3 anos. Não me lembro de tudo, obviamente, mas tenho flashes de várias situações que, relatadas à minha mãe, ela sempre se surpreende por me lembrar de algo em tão tenra idade.

E de tudo que me lembro, a cena que quase sempre me vem à mente é uma da minha mãe indo embora. Não sei quando foi, mas um barulho sempre me remota àquele lugar: o pisar em folhas secas de amendoeira. Explico. Era um dia daqueles de visita, em que as crianças, loucas e histéricas, ficavam correndo de um lado pro outro com os pais e sempre exibindo os presentes que eles traziam. Nem sempre minha mãe tinha algo pra levar, mas só dela estar ali, nossa, que alegria. Me lembro do meu quarto, que era grande e cheio de camas. Tinha um banheiro no final, que sempre ficava com a luz acesa, para casos de pesadelo. De vez em quase sempre, eu tinha. Sonhava com a minha mãe indo me buscar naquele lugar, mas ela não me achava, e eu ficava lá, presa. Esse era recorrente.

Voltando ao dia da visita. Naquele dia, minha mãe não havia levado nada de especial, mas eu não desgrudava de suas pernas. Na minha cabeça de criança, eu tinha que aproveitar ao máximo aqueles momentos: ele podia não acontecer novamente. Ela poderia não voltar mais. Com tantos havia sido assim. E, de repente, soou aquele alarme, aquele barulho quase ensurdecedor, que indicava o fim das visitas. Minha mãe se abaixou devagar, passou a mão nos meus cabelos e me disse: "a mamãe tem que ir, mas volta. Fique diretinho, se compo..." Eu já não ouvia mais nada, estava em prantos. Queria ir embora daquele lugar. Lá, a gente apanhava e não podia contar pros pais. Se contasse, apanhava ainda mais. E, claro, ninguém acreditava em nós. "Essas crianças... Sempre inventando histórias..." Me agarrei às suas pernas com todas as minhas (pequenas) forças. Mas elas eram pequenas mesmo: quando dei por mim, alguém me segurava pelo braço, enquanto via minha mãe se dirigir a um portão preto e grande que havia perto de onde ficávamos nas horas da visita. Consegui me desvencilhar da pessoa que me segurava e corri em direção a uma das grades. Consegui subir e comecei a gritar desesperadamente: "Mamãe, não vai! Mamãe! Mamãe! Mamãe..." E, de repente, tudo ao meu redor ficou em silêncio. Eu via, em câmera lenta, minha mãe se distanciar cada vez mais, e um barulho ocupou todos os meus sentidos: o pisar dela nas folhas secas das amendoeiras que se amontoavam pela rua. Eram muitas. 'Crec, crec, crec..." primeiro, devagar. Depois, o barulho aumentou drasticamente: minha mãe corria. E eu soluçava, vendo-a desaparecer... Até que alguém me puxou violentamente, me chamando pelo nome, e todos os sons voltaram ao normal. "Engole esse choro! Palhaçada! Tua mãe vai voltar, eu hein!".  

Voltou mesmo. E me tirou daquele lugar. E fomos viver juntas. As coisas haviam melhorado e ela podia, agora, cuidar de mim, me levar para escola, ser minha mãe em tempo integral. Você não faz idéia de como era maravilhoso acordar de um sonho ruim e ver minha mãe ali perto. "Nem vem, pesadelo, agora, quem está aqui perto não é a luz do banheiro: é a minha mãe!".

Dei trabalho à minha mãe depois. Aquela rebeldia idiota da adolescência. Desprezei as suas dores, esqueci as suas lágrimas, ignorei seus cuidados, dava de ombros para as suas preocupações. Até que, um belo dia, fui mãe. Na exata hora em que meu filho veio para os meus braços, nem um minuto antes e nem um depois, naquele momento, entendi minha mãe como nunca havia entendido.

Na minha "festa maravilha", fiz questão de prestar uma homenagem a ela. De agradecer por ela ter insistido em me ter, mesmo tendo ido àquele lugar. De não ter me deixado pra trás, quando pode, naquele orfanato. De, mesmo sozinha, ter-nos criado (tenho uma irmã!) com sacrifício e honestidade. De ter sido exemplo de força e fé. De ter sido a minha mãe. A melhor que eu poderia ter.

Não espere para ser mãe (ou pai) para entender o amor daqueles que lhe deram a vida. Não espere que eles morram, para prestar a homenagem que eles devem receber em vida. Não deixe que aquele "não" para um presente, uma saída, um namoro sirva para endurecer seu coração.

Você pode se arrepender depois, e pode ser que seja muito tarde para pedir perdão. O barulho do pisar das folhas de amendoeira será eterno em sua mente...






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4 Comentários:

Às 28 de abril de 2015 às 07:22 , Blogger Unknown disse...

Meu Deus Ana, eu preciso da caixinha de lenços inteira Obrigada por compartilhar da tua história e de despertar em mim algo que esquecemos no dia a dia, não vejo a hora da minha mãe chegar pra eu poder dar um abração nela e dizer o quanto a amo! #floresemvida

 
Às 28 de abril de 2015 às 09:32 , Blogger Unknown disse...

Mais uma vez me emociono, como no dia da festa. E não tendo minha mãe do lado para compartilhar tantas coisas (muitas vc sabe...). Uma caixinha de lenço é pouco, kkkkk

 
Às 28 de abril de 2015 às 17:50 , Blogger Unknown disse...

Obrigada Ana por compartilhar tua história e conhecimento...

 
Às 28 de abril de 2015 às 22:05 , Blogger Unknown disse...

Chorei... obrigada por abençoar com texto simples, mas carregado de emoção!

 

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