quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Eu sinto muito...

Era pra ser um dia como outro qualquer. Ela acordou no mesmo horário, como de costume, após o barulho estridente do despertador.

Levantou-se, caminhou até o banheiro, e abriu o chuveiro devagar. A água estava tão quentinha. Entrou de cara, molhou as costas. Usou o sabonete líquido de sempre. "Não posso me atrasar", pensou enquanto deixava a água escorrer pela nuca. 
A roupa já estava separada em cima da cadeira. Arrumou-se rápido. Colocou o brinco olhando para o espelho, ajeitou o cabelo, passou o batom. Tirou o excesso, olhou as horas e fez cara de quem estava em cima da hora. Passou a mão na bolsa, colocou-a no ombro e desceu a escada em galopes apressados. "Tchau, mãe!", disse enquanto pegava a chave do carro em cima da mesa. "Vai com Deus, minha filha", ela ouviu de longe.

O sol estava a pino. Ela colocou os óculos escuros, abriu o portão e, a partir daí, tudo o que ela mais temia aconteceu... Ela não sabe se já esperavam por ela ou se ela foi uma escolha ao acaso. Era início da manhã... Ela só percebeu do que se tratava quando viu a arma. "Perdeu, perdeu! Passa tudo!" Ela demorou a entender, foi tudo muito rápido. Empurram-na na calçada... "A bolsa, a bolsa!", os pedidos eram feitos entre gritos e palavrões... Ela entregou e nem levantou a cabeça... Até que ela ouviu sua sentença: "Leva ela!"

Um pavor percorreu cada centímetro do seu corpo. Uma descarga absurda de adrenalina, os batimentos descompassados, lágrimas, choro, terror. Do banco de trás, ela via sua casa desaparecer... Não adiantou pedir: "por favor, me deixem ir. Fiquem com tudo..." Eles queriam mais...

Após aterrorizarem-na com palavras, gestos e tudo o mais de abominável que se possa imaginar, decidiram pelo hediondo. Naquele lugar para onde a levaram, ninguém ouviu seus gritos. A cada "não!", o peso da mão do algoz a acertava no rosto. Em cada pedido de desespero, a ponta da faca sangrava sua pele. Diante do inevitável, os olhos paralisaram no teto, e ela viu cenas da sua vida: o cachorro da infância; as brincadeiras com os irmãos; o beijo na testa que o pai dava antes de sair; o amor da sua vida; o último Natal; os fogos do Ano-Novo... Até que, de repente, sua mente se desligou, para que a alma não sofresse tanto... 

Quando os seus olhos se abriram novamente, ela não sabia se havia morrido ou se estava presa em um pesadelo... Tentou se mexer, e uma dor lancinante percorreu toda a sua carne. Fechou os olhos novamente, com medo de ainda ter alguém ali. Não havia som algum, então ela abriu os olhos novamente... Levantou devagar a cabeça, na tentativa de ver onde estava. Seu corpo estava ensangüentado... Não viu suas roupas, nem havia nada com que pudesse se cobrir. Apoiou-se no chão. Arrastou-se até onde pode e encostou-se na parede. Olhou ao redor, olhou novamente pra si e caiu em um choro silencioso. Não haviam tocado apenas no seu corpo, tinham ferido profundamente a sua alma... E era uma dor que remédio algum aliviaria naquele momento...

Ela conseguiu se levantar, abriu a porta daquele lugar e saiu caminhando sem direção. Não fazia idéia de onde estava, mas lá na frente avistou uma luz. Vergonha, medo e impotência a acompanhavam. Bateu no portão, e quando ele se abriu, ela só conseguiu dizer: "me ajuda"... 

Um lençol estampado devolveu-lhe a dignidade no momento. Não sabiam o que fazer, se podiam tocá-la. E choraram. Todos choraram. Silenciosamente, todos choraram. Ela quis tomar um banho, mas disseram que seria melhor ir para a delegacia primeiro. Ela pediu para fazer uma ligação, e foi pra ele. Ele que sempre soube o que fazer... "Me tira daqui..."

Sirenes, polícia, hospital, corpo de delito, curativos, coquetel de remédios, perguntas, choro, "como será que ela estava vestida", banho. E, no banho, ela tentava esfregar a dor, a raiva, os porquês, a frustração, o ódio... E chorou tanto e tanto que já não suportava mais chorar.

Deitou na sua cama, olhando pra parede. A voz sumiu, o olho petrificou, a alma saiu dela. Ninguém diz nada, ninguém pergunta nada. Apenas dizem: "estamos aqui".

Quando eu soube o que fizeram com ela, chorei. Meu corpo todo tremia de pavor e raiva. Ela vivenciou a violência em sua pior forma. Ela não ouviu falar; ela sentiu. E eu quis tanto abraçá-la, quis ir lá e colocar a cabeça dela na minha perna e fazer um carinho no cabelo dela. Eu chorei muito. E até agora penso nela. Não consegui desligar... Eu sinto muito por você ter passado por isso, sinto muito. Há uma dor no meu coração que você não sabe, talvez porque eu entenda tudo que você tenha passado, e eu jamais gostaria que alguém passasse por essa dor também... Eu sinto muito! Perdoe os que se sentam na beirada da cama e nada dizem... Eles não sabem que palavras usar... Eu sei que você não sabe como vai sair disso agora. Mas essa dor não será para sempre. Ela vai ter um tempo. Estaremos todos esperando por você aqui, pelo seu sorriso, pela sua vontade enorme de viver...

Vai passar.
Vai amanhecer.

Até lá...


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